ANÁLISE O Animal Cordial (2018):

Maria Isabel Galvão
4 min readApr 28, 2021

O Animal Cordial, primeiro longa metragem da diretora brasileira Gabriela Amaral, e produzido pelo famoso produtor Rodrigo Teixeira, se consagra como um slasher visceral que difere dos gêneros que o cinema nacional costuma brincar. A história gira em torno de um restaurante gerido por Inácio, um chefe agressivo interpretado por Murilo Benício, e seus respectivos funcionários e clientes. Todo o enredo se passa numa única noite na qual ocorre um assalto suspeito no estabelecimento e os acontecimentos se desenrolam de modo caótico e desesperador.

Apesar de algumas falhas, O Animal Cordial se mostra como um excelente filme de suspense na medida em que entrega exatamente aquilo que se propõe: o inesperado. Mesmo sendo o longa pioneiro da diretora, Amaral mostra perfeito controle de sua obra e detém uma assinatura técnica indistinguível. A filmagem é fluida, com vários momentos de plano sequência, e instantes engenhosos nos quais a câmera subjetiva é muito bem utilizada. A diretora brinca com as diversas profundidades de campo em suas cenas de diálogo e descarta o campo e contracampo em sua maior parte do tempo. Assim, a decupagem foge do clássico e se estratifica como uma referência ao seu próprio senso estético e artístico.

O que mais me chama a atenção em O Animal Cordial e o foco principal dessa análise é como a história se define como um terror que gira em torno do feminino, em toda a sua completude. Sara, a garçonete protagonista, interpretada por Luciana Paes, é uma mulher frustrada que vive numa realidade inventiva na qual espera a realização de seu romance com uma versão de Inácio que não parece realmente existir. Em meio ao assalto e suas consequências, sua utopia se evoca da pior maneira possível.

O incômodo começa logo no início do filme, minutos antes do restaurante fechar, em razão da clientela peculiar que impede que os funcionários possam encerrar o expediente. São eles: um senhor solitário que come seu jantar sem pressa, interpretado por Ernani Moraes, e um casal rico e espalhafatoso, interpretado por Jiddu Pinheiro e Camila Morgado. A personagem de Camila é Veronica, uma mulher linda e elegante que desde o primeiro momento desperta sentimentos negativos por parte de Sara.

O assalto que vem a ocorrer momentos depois é desconfortável, em especial pela realização crua da objetificação de Veronica pelas figuras dos assaltantes. Ela sofre abuso sexual fronte a todos os outros presentes antes que as demais personagens reajam e a trama se desenrole para outros horizontes.

Nas cenas que se sucedem, Sara ajuda Veronica a ir ao banheiro amarrada e fica nítido que o desdém que a garçonete tem por ela é algo pessoal. Por fim, quando Veronica morre pelas mãos de Inácio, um estopim parece acontecer com a protagonista. Sara se apossa dos brincos caros e do batom de Veronica, agora morta e assim, não mais uma ameaça. Ao se utilizar desses objetos simbólicos da feminilidade e sensualidade da outra, Sara parece deixar que um alter ego tome conta: uma personalidade mais confiante, mais consciente de sua sexualidade e de sua própria força. A cena sangrenta de sexo icônica vem logo depois dessa epifania.

Logo, fica claro que o ódio que Sara detinha por Veronica vinha de uma inveja ácida e da possível ameaça que ela representava a sua figura, que parecia sumir em prol da presença hipnotizante da outra. Sua morte representa o renascimento da confiança de Sara e seu declínio para a total insanidade.

Deixando as personagens de Sara e Veronica de lado, é importante apresentar outra figura de destaque: Djair, o cozinheiro do restaurante, interpretado pelo brilhante Irandhir Santos. Djair é um homem sereno, confortável com sua própria homossexualidade e detentor de uma belíssima delicadeza em seu jeito de ser. Sua figura, mesmo sem motivos aparentes, desperta um incomodo absurdo em Inácio, seu chefe.

Com o desenrolar da trama, o espectador passa a entender que o desconforto de Inácio advém justamente do modo como Djair vive sua vida e ama sua própria pele. Todos os xingamentos, as acusações e ameaças dirigidas ao cozinheiro não são realmente fundamentadas em fatos, mas sim no desejo paranoico de Inácio de fazer o outro sofrer. Por isso, a cena em que ele corta o cabelo de Djair é tão simbólica e violenta. Enquanto o patrão fez todos os outros sofrerem uma violência física, a tortura de Djair é psicológica: ferir o cozinheiro onde ele mais machuca Inácio.

Assim, nota-se que os protagonistas Sara e Inácio ambos se movem contra figuras específicas por motivações extremamente profundas que remetem a um ódio enraizado por tais signos femininos. Porém, obviamente, a trama de Gabriela Amaral é muito mais complexa e adentra diversos outros temas como racismo, desigualdade social, violência e dramas psicológicos intensos.

Todas as personagens do filme têm grande profundidade emocional e nenhuma delas se mostra como um problema que poderia ser resolvido. No fim, O Animal Cordial é sobre problemáticas humanas que nunca serão realmente sanadas, e até onde o lado animalesco da sociedade pode vir à tona quando motivado. Apesar de todas as características estilísticas de um slasher, a diretora se arrisca a ir além e coloca em evidência as complexidades da carne em proveito do desenrolar de um drama existencialista.

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Maria Isabel Galvão

Estudante de cinema, faço análise de filmes (alguns novos, outros nem tanto).